segunda-feira, 25 de outubro de 2010

PRELIMINAR

Afinal, de quem é o sermão, de S.to António ou do P.e António Vieira?
Trata-se de um título original para um sermão do P.e António Vieira, proferido no dia de S.to António e dirigido aos habitantes de S. Luís do Maranhão. É a sua imitação de como poderia ter pregado o Franciscano.

Não anda aqui, desde o título, o mundo às avessas, não há já aqui a metamorfose, o mundo como um palco – em que a realidade do pregar se torna ficção?

Que precisamos de saber sobre Santo António (nascido em Lisboa, a 13 de Setembro de 1191, e falecido com 36 anos, em 13 de Junho de 1231, nas vizinhanças de Pádua, Itália) para entender o sermão?
·         Que se celebrava a sua festa;
·         Que ele era franciscano – daí tratarem-se os peixes por irmãos;
·         Que, embora homem humilde, era sábio;
·         Que a lenda tornou a sua vida ficção – porque ele nunca pregou a peixes!...
·         Que é doutor da Igreja – título atribuído só àqueles ou àquelas que especialmente se distinguiram pelo seu saber, pela sua doutrina: daí a escolha do texto evangélico…
As leituras da missa de S.to António eram as da missa dos santos doutores (Vieira parte do evangelho dessa missa).

Que deve o pregador fazer em dia de Santo António? Tecer o seu elogio, exaltar as suas virtudes, propô-lo como exemplo.
Que faz Vieira? Numa situação semelhante à do Santo (de rejeição da sua pregação), procede como ele (como a lenda diz que ele procedeu…) Esta atitude de imitação e as referências que repetidamente faz ao Santo redundam no seu elogio, exaltam as suas virtudes, mostram-no como modelo.

"Vós sois o sal da Terra!", "Vós sois a luz do mundo!"
O P.e António Vieira, como os pregadores seus contemporâneos, fazia interpretações arbitrárias do texto bíblico. O seu engenho torna-o ágil nessa arte de interpretação livre, de apropriação – que criticava nos outros. Fá-lo moderadamente neste sermão e já no exórdio. Segundo um contemporâneo, os ouvintes dos seus sermões saíam da igreja mais espantados do que convencidos.

Extrato do evangelho da missa dos santos doutores:

Vós sois o sal da terra!
Se o sal perde o sabor, com que lhe será ele restituído? Para nada mais serve senão para ser lançado fora e calcado pelos homens.
Vós sois a luz do mundo!
Não se pode esconder uma cidade situada sobre uma montanha nem se acende uma luz para colocá-la debaixo do alqueire, mas sim para colocá-la sobre o candeeiro, a fim de que brilhe a todos os que estão em casa.
Assim, brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus.

Qual a principal função do sal? Bem sabemos que é a de temperar. Mas também conserva.
No mesmo passo do Evangelho, afirma-se: "Vós sois a luz do mundo!"
O sal tempera, a luz ilumina.
Originalmente, estas expressivas metáforas, que depois se desenvolvem em alegorias, não eram aplicadas aos "pregadores" em particular, mas dirigidas à multidão dos discípulos. Mas é claro que fazem um sentido especial quando aplicadas aos pregadores e missionários.

Veja na Wikipédia

A ALEGORIA

Leiam-se estas duas frases de S.to António:

·         “As duas asas da ave são a fé e a esperança da alma; elevam-na das coisas terrenas. A fé e a esperança respeitam ao invisível, e por isso elevam do visível ao invisível”.
·         “As partes da vida do homem são o oriente do nascimento, o ocidente da morte, o meio-dia da prosperidade e o setentrião ou aquilão da adversidade”.

Tempos houve em que alegoria era um processo muito vulgarizado. Era assim nos sermões de S.to António, donde se retiraram os dois exemplos acima.
No texto alegórico há sempre duas realidades distintas, mas paralelas. No primeiro exemplo, dum lado temos as asas da ave, do outro as virtudes da fé e da esperança. Olho para as asas da ave e vejo a fé e a esperança ou olho para a fé e para a esperança e vejo as asas da ave.
No segundo exemplo, temos os pontos cardeais e a vida do homem. Olhando para os pontos cardeais, vejo a vida do homem ou olhando para a vida do homem vejo os pontos cardeais.
No romance Gabriela, Cravo e Canela, ocorre uma vez esta sucessão de metáforas “Lindas flores deste canteiro florido de Ilhéus”, para significar as senhoras do lugar: dum lado temos flores e canteiro, doutro as senhoras e a sua terra.
Jesus Cristo chama aos seus ouvintes “luz do mundo” e depois quer que eles iluminem: dum lado está a luz e a iluminação que projecta, do outro estão os divulgadores que devem levar a todo o lado a sua palavra.
No sermão fala-se de peixes, que se louvam ou se repreendem, para se louvarem ou repreenderem os homens.
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Alegorias dentro da alegoria
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Na alegoria maior que é o sermão – Vieira dirige-se aos peixes para falar aos homens - encontramos muitas alegorias menores: a da rémora, a do torpedo, a do peixe de Tobias, a do grande escândalo, a da cegueira, a do peixe voador, a da ronca, a dos pegadores, a do quatro-olhos, a do polvo…
Estas alegorias são quase sempre constituídas por três momentos:

·         A descrição objectiva duma qualidade do peixe ou dum aspecto da sua vida (a este nível, a linguagem não é alegórica):
         O torpedo faz tremer a mão de quem o pesca.
·         A utilização da linguagem alegórica originada no fenómeno descrito para criticar defeitos humanos:
        Aos pescadores de terra deviam tremer-lhe as mãos:
        “Tanto pescar e tão pouco tremer!”
·         A utilização da linguagem alegórica originada no fenómeno descrito para elogiar Santo António:
           S.to António fez tremer 22 ouvintes, que devolveram os roubos e se corrigiram.

Verifique este processo, por exemplo, em relação ao pegador ou ao voador.

Leia este texto e verifique se pode ser classificado como alegoria:

O homem é como um automóvel.
O automóvel tem o motor, que o faz andar, que o empurra; o homem tem a paixão que o impele para a acção.
O automóvel tem o volante, que permite conduzi-lo para onde se quer; o homem tem a inteligência, que lhe há-de governar a vontade, a força das suas paixões.
O automóvel tem o travão, que lhe trava o ímpeto em ocasiões de perigo; o homem tem a força de vontade, que o há-de reter a mando da inteligência.
Olhando para o automóvel, posso ver o homem; olhando para o homem, posso ver o automóvel.


As estátuas aos lados, acima, são uma alegoria da justiça: reparar no livro das Leis (na da direita), na balança (para avaliar a bondade ou maldade dos actos a julgar) e na espada para castigar o crime (na da esquerda).

I - EXÓRDIO (proposição e invocação)

Na introdução (exórdio), a partir do conceito predicável Vós sois o sal da terra, o Vieira propõe o tema, o problema.

Síntese do pensamento do exórdio
O pensamento do exórdio pode-se sintetizar assim:
O Maranhão está corrupto por uma de duas razões ou pelas duas simultaneamente:
ou porque o sal não salga ou porque a terra se não deixa salgar.

Se o sal não salga, muito mal estão os pregadores.
Se a terra se não deixa salgar, que se poderá apesar de tudo fazer?
Num contexto semelhante ao de S.to António em Arimino (de agitação, de rejeição aberta), Vieira decide proceder como ele: pregar aos peixes, ali no Maranhão.

Intertextualidade
Já no exórdio, mas também ao longo de todo o sermão, vão ocorrer muitas citações, isto é, no texto de Vieira cruzam-se outros textos. É a este cruzamento – comum a quase tudo que se escreve ou diz – que se chama intertextualidade.

O Sermão, texto barroco
No Sermão devemos procurar o excesso barroco. Ao nível estilístico há casos muitos claros. As frases seguintes são um exemplo:
“Ou é porque o sal não salga ou porque a terra se não deixa salgar.
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina;
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhe dão, a não querem receber.
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra;
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem mais imitar o que eles fazem que fazer o que dizem.
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo;
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites”.
Temos aqui a repetição (anáfora), a antítese sal/terra, ouvintes/pregador e outros, o paralelismo da construção das frases, a linguagem alegórica ao lado da linguagem corrente…
Há vários segmentos de teor semelhante ao longo do sermão.
Outro caso de paralelismo ou simetria:
“Deixa as praças, vai-se às praias;
Deixa a terra, vai-se ao mar”

Quando Vieira declara que S.to António foi “sal do mar”, está a usar um paradoxo; de facto ele está a usar um discurso engenhoso, feito de subtilezas (conceptismo). Esse discurso engenhoso já estava naquela sequência paralelística: a terra que se não deixa salgar é descoberta sua, não estava no texto evangélico, as várias hipóteses explicativas são outros tantos achados engenhosos, da sua argúcia, etc.
Os quiasmos.

A crítica à sociedade do Maranhão
Vieira pregou este sermão três dias antes de se embarcar ocultamente para Portugal a procurar ajuda para a sua luta antiesclavagista. O leitor deve estar atento para descobrir até que ponto e de que modo se reflecte no texto o calor da polémica, da agitação que grassava na cidade.
É possível contudo que este sermão escrito divirja muito do sermão originalmente pregado.



Observações estilísticas

Ou é porque o sal não salga ou porque a terra se não deixa salgar.
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina;
ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber.
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra;
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem que fazer o que dizem.
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo;
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites.
Não é tudo isto verdade? Ainda mal!

A expressão alegórica e as suas traduções: ambiguidade, plurissignificação.
A anáfora, o paralelismo, a antítese. A argúcia.

II – CONFIRMAÇÃO – Louvores em geral

Vieira faz um discurso dirigido aos peixes para falar aos homens. É indispensável que o ouvinte (o leitor) se dê conta do invulgar da situação: um sacerdote, dentro da igreja, a falar do púlpito para os peixes (que estão a uma ou duas centenas de metros de distância), e que não têm, evidentemente, nada a ver com o Sermão.
É o mundo do jogo, do artifício estético-oratório, do Barroco, da metamorfose, do excessivo.

Introdução – dois parágrafos iniciais

Desenvolvimento – o restante


Observações estilísticas:
Assinalam-se a seguir alguns casos de maior interesse estilístico, mas há certamente muitos, muitos mais. Descubra-os!

Ironia e ambiguidade, prosopopeia:
«Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório (o de Vieira ou os peixes?). Ao menos têm os peixes (os ouvintes de Vieira?) duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa poderia desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes (os ouvintes de Vieira?) que se não há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária que já pelo costume quase se não sente (os ouvintes de Vieira são empedernidos)».

Paralelismo, antítese e quiasmo:
«Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes; mas neste caso
os homens tinham a razão sem uso, e os peixes o uso sem a razão

Enumerações e séries paralelísticas, plurimembração (atenção ao remate – thésis - das frases):
«Dos animais terrestres o cão é tão doméstico,                                                                             
 o cavalo tão sujeito,
 o boi tão serviçal,
 o bugio tão amigo ou lisonjeiro,
e até os leões e tigres com arte e benefícios se amansam (thésis)

«Dos animais do ar,
afora aquelas aves que se criam e vivem connosco,
                        o papagaio nos fala,
                        o rouxinol nos canta,
                        o açor nos ajuda e nos recreia;
e até as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento (thésis)

«Cante-lhe aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola;
diga-lhe ditos o papagaio, mas na sua cadeia;
vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes;
faça-lhe bufonarias o bugio, mas no seu cepo;
contente-se o cão de lhe roer um osso, mas levado onde não quer pela trela;
preze-se o boi de lhe chamarem fermoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro;
glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora;
e se os tigres e leões lhe comem a ração de carne que não caçaram nos bosques, sejam presos e encarcerados com grades de ferro (thésis)

Ironia:
«Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens (dos do Maranhão…)! Perguntado um grande filósofo qual era a melhor terra do mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais longe.»

Intertextualidade:
Repare-se na abundância de citações, como se a Bíblia (Génesis, Daniel, Jonas …), S. Basílio, Aristóteles, S.to Ambrósio se ocupassem sobretudo de peixes…

Santo António no Sermão: procurar.

A crítica aos colonos do Maranhão: procurar.

III – CONFIRMAÇÃO – Louvores em particular

Atenção à estrutura global a que obedece o sermão. No particular, Vieira procede por analogias, por leitura alegórica, não por dedução, racionalmente.

Paralelismo, jogo de palavras:
“Só uma diferença havia entre Sto. António e aquele peixe:
Que o peixe abriu a boca contra quem se lavava e
        Sto. António abria a sua contra os que se não queriam lavar.”

Ironia:
“Ah moradores do Maranhão, quanto eu vos pudera dizer neste caso! Abri, abri estas entranhas; vede, vede este coração.
Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não prego a vós, prego aos peixes.”

Reparar que o discorrer do pregador sobre cada peixe condu-lo sempre a Sto. António. Usando a linguagem do peixe para falar do Sto., constrói numerosas alegorias dentro da alegoria maior do sermão:

Alegoria das naus e da rémora (reparar também nos paralelismos e nas interrogações retóricas):

“Quantos, correndo na Nau Soberba, com as velas inchadas do vento e da mesma soberba (que também é vento), se iam desfazer nos baixos, que já rebentavam por proa, se a língua de António, como rémora, não tivesse mão no leme, até que as velas se amainassem, como mandava a razão, e cessasse a tempestade de fora e a de dentro?
Quantos, embarcados na Nau Vingança, com a artilharia abocada e os bota-fogos acesos, corriam enfunados a dar-se batalha, onde se queimariam ou deitariam a pique, se a rémora da língua de Sto. António lhe não detivesse a fúria, até que, composta a ira e o ódio, com bandeiras de paz se salvassem amigavelmente?
Quantos, navegando na Nau Cobiça, sobrecarregada até às gáveas e aberta com o peso por todas as costuras, incapaz de fugir, nem de se defender, dariam nas mãos dos corsários com perda do que levavam ou iam buscar, se a língua de Sto. António os não fizesse parar, como rémora, até que, aliviados da carga injusta, escapassem do perigo e tomassem porto?
Quantos, na Nau Sensualidade, que sempre navega com cerração, sem sol de dia nem estrelas de noite, enganados do canto das sereias e deixando-se levar da corrente, se ririam perder cegamente, ou em Cila ou em Caríbdis, onde não aparecesse navio nem navegante, se a rémora da língua de Sto. António os não contivesse, até que esclarecesse a luz e se pusesse em via?”

Discurso engenhoso, alegoria do torpedo e da pesca, ironia:
“Quem dera aos pescadores do nosso elemento, ou quem lhe pusera esta qualidade tremente (ambiguidade, metáfora), em tudo o que pescam (ambiguidade, metáfora) na terra!
Muito pescam, mas não me espanto do muito; o que me espanta é que pesquem tanto e tremam tão pouco.
Tanto pescar e tão pouco tremer!”

“No mar, pescam-se as canas, na terra pescam as varas (e tanta sorte de varas); pescam as ginetas, pescam as bengalas, pescam os bastões e até os ceptros pescam, e pescam mais que todos, porque pescam cidades e reinos inteiros.
Pois é possível que pescando os homens cousas de tanto peso, lhes não trema a mão e o braço?!”

Paralelismo e apóstrofe:
“Prezem-se as aves e os animais terrestres de fazer esplêndidos e custosos os banquetes dos ricos,
e vós gloriai-vos de ser companheiros do jejum e da abstinência dos justos.”

IV – CONFIRMAÇÃO – Repreensões em geral

Alegoria do «grande escândalo», apóstrofe, ironia:
"Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda.
A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos-mal."

Anáfora, séries paralelísticas (plurimembrações), ironia, apóstrofe, antítese, interrogação retórica:
"Vedes todo aquele bulir,
vedes todo aquele andar,
vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas,
vedes aquele subir e descer as calçadas,
vedes aquele entrar e sair sem sossego?"

Alegoria, anáfora, séries paralelísticas (plurimembrações), antítese, ambiguidade, ironia:
"Comem-no os herdeiros,
comem-no os testamenteiros,
comem-no os legatários,
comem-no os acredores;
comem-no os oficiais dos órfãos, os dos defuntos e ausentes;
come-o médico, que o curou ou ajudou a morrer;
come-o o sangrador que lhe tirou o sangue;
come-o a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para mortalha o lençol mais velho da casa;
come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar;
enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra (thésis)."

"Come-o o meirinho,
come-o o carcereiro,
come-o o escrivão,
come-o o solicitador,
come-o o advogado,
come-o o inquiridor,
come-o a testemunha,
come-o o julgador,
e ainda não está sentenciado, já está comido (thésis)."

V – CONFIRMAÇÃO – Repreensões em particular

Agora que estamos a caminho do fim do estudo deste Sermão, deve o aluno estar atento a certas características barrocos do texto e ser capaz de identificar os mais frequentes e significativos processos estilísticos que nele ocorrem, como a alegoria, a ironia, o paralelismo, a prosopopeia ou animismo, a interrogação retórica, alguns jogos de palavras, ser capaz de verificar quando o orador repreende os moradores do Maranhão ou, alargando a perspectiva, atinge defeitos comuns a qualquer comunidade cristã…
Isto não exclui outros aspectos para que já foi repetidamente chamada a atenção, como o elogio do Santo António, a intertextualidade, o engenho[1]
Procure a ironia e alegoria nas reflexões sobre o roncador, o pegador, o voador, o polvo…

Alegoria da traição
"O polvo,
com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge;
com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela;
com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão.
E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja latina e grega que o dito polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta traição do polvo primeiramente em se vestir ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores a que está pegado.
As cores, que no camaleão são gala, no polvo são malícia;
as figuras, que em Proteu são fábula, no polvo são verdade e artifício."


[1] O engenho de Vieira manifesta-se sobretudo pelas aproximações inesperadas entre conceitos, que lhe permitem fazer as suas alegorias e ironias, descobrir que deve pregar aos peixes como o Santo António, etc.